Recebi algumas sugestões para falar sobre o processo de idealização e realização do documentário Tacet, o que me trouxe uma imensa alegria e profundas reflexões, que vou compartilhar neste post.
Por que eu, flautista e pesquisadora, decidi me aventurar no mundo dos documentários? Por que Tacet? Por que trazer o tema das minhas reflexões científicas para uma produção audiovisual? Por que pesquisar a (in)visibilidade das mulheres na música?
Mas antes de começar a falar sobre Tacet, preciso contar que acredito que todas as pessoas deveriam ter a oportunidade de vivenciar a arte para, finalmente, sentirem o que faz sentido para si. É assim que penso a ciência. Acredito que o conhecimento deveria ser acessível a todos. Então, comecei a refletir sobre como me comunicar sobre o que faço na academia. Como trazer a ciência para nossas conversas?
Assim, cheguei a duas ideias: um blog e um filme 😉
Pesquisa Científica – A (in)visibilidade das mulheres na música erudita no Brasil
Para escrever este texto, tive que voltar no tempo e chegar a um texto de uma estudante de composição, no qual a mesma se questionava onde estavam as compositoras na música erudita. Minha tentativa de resposta foi frustrada e abriu uma lacuna que vai desde os meus 10 anos de formação na academia até minha trajetória como flautista e pesquisadora.
Esta aluna abriu em mim uma fenda! Esta aluna gerou em mim um questionamento! Onde as mulheres musicistas estão?!
Num primeiro momento, temos a tendência de dizer:
— Aquiii!
— Eu estou aqui!
— Ela está ali!
Mas a invisibilidade ou ausência da presença feminina, durante toda a história da música ocidental clássica, é naturalizada no meio. Ao nos questionarmos sobre nomes femininos na área, percebemos a ausência dos mesmos e o consequente impacto na formação dos futuros musicistas. Durante minha formação, não tive acesso a compositoras, não me lembro de nomes femininos nas aulas de análise ou apreciação musical, nunca sequer toquei uma obra de uma mulher que fosse recomendada pelos meus professores (cabe ressaltar que todos meus professores de instrumento, na universidade, foram homens).

Porém, o silenciamento das mulheres não se dá de maneira tão clara e explícita. A invisibilidade das mesmas é sentida no dia a dia, de maneira velada. Contudo, isso não significa que as mulheres não atuem em cargos de primeiro escalão, mas que tal atuação é dificultada e quando efetivamente existe, ocorre em espaços públicos “masculinos”, como a instituição orquestra sinfônica, por exemplo. A socióloga Liliana Rolfsen Petrilli Segnini explica que as musicistas sentem a existência de limites invisíveis que as impedem de ter as mesmas condições que seus colegas em ocupar postos de prestígio nas orquestras sinfônicas.
A exclusão de obras de compositoras e nomes femininos nos meios musicais, educacionais e científicos reflete na invisibilidade das mulheres na área. Entendo que a figura do compositor assume o lugar de fala e que o ato de falar não é neutro. Muito pelo contrário! Quem fala comunica seus vieses interpretativos e suas características culturais e sociais. Sendo assim, compreendo que a oportunidade de falar gera uma hierarquização, atribuindo poder e exclusividade ao pensamento e à divulgação de apenas um conhecimento dominante. Quem ocupa o lugar de fala ocupa também uma posição de poder e, consequentemente, a possibilidade de existência. Djamila Ribeiro conta, no livro “O que é lugar de fala?”, que a história vem nos mostrando que a invisibilidade mata.
Como pesquisadora, me debrucei sobre os dados e as análises envolvendo o silenciamento das mulheres na música erudita no Brasil. Iniciei um projeto de pesquisa e investigo o assunto desde então. A pesquisa tem o objetivo de contar as mulheres que atuam em cargo de liderança na música. E aqui o verbo “contar” vem para contabilizar, para quantificar estas mulheres, sendo esta uma maneira de existência. Quantas são as obras tocadas por orquestras brasileiras que são compostas por mulheres? Qual o número de mulheres que atuam como solistas ou regentes convidadas?
A investigação científica começou a ser repensada. Analisamos, reportamos e discutimos os números, havíamos “contado” quantas eram. Porém, desejava contar, agora de uma maneira mais profunda, a história das mulheres musicistas. E aqui o verbo “contar” vem para narrar, para falar, para mencionar a vivência destas mulheres, como uma maneira de (re)existência. Para isso, o trabalho acadêmico deu origem ao projeto artístico Elas por Elas, no qual mulheres musicistas performam obras próprias ou de outras mulheres. E em 2020 idealizei e realizei o documentário Tacet.
Elas por Elas, 2018 Tacet, 2021
Busquei em Tacet trazer luz para a discussão sobre mulheres que atuam em posições de liderança como, por exemplo, compositoras, regentes, solistas, chefes de naipe, etc., e que tem suas presenças dificultadas. Segundo Flávia Biroli, no livro “Gênero e desigualdades: os limites da democracia no Brasil”, embora as mulheres tenham, em média, mais tempo de educação formal que os homens, há ainda uma significativa diferença entre a renda média desses grupos, além do fato de que a profissionalização não garantiu às mulheres um acesso igualitário nas diferentes posições de trabalho.
Livros da pesquisadora Flávia Biroli para a Editora Boitempo. O que é lugar de fala? Djamila Ribeiro. Feminismos Plurais.
O filme traz três mulheres musicistas relatando suas experiências de ocultamento e, muitas vezes, descrevendo momentos de ‘stress’ e insegurança durante seus trabalhos musicais. Sara, Catherine e Catarina mostram como é ser uma mulher em diferentes tempos e falam sobre suas experiências durante a formação musical, no ambiente de trabalhos e ao se reconhecerem como mulheres musicistas.
A ideia do documentário é, para mim, uma experiência desconhecida e cada passo foi pensado para que eu pudesse me aproximar das histórias de cada uma. Fiz uma lista de mulheres que eu queria conversar, escrevi um roteiro de perguntas, pensei na estrutura e… nada ocorreu como imaginei! Histórias tão diferentes e tão semelhantes foram se cruzando na minha frente e ao final: Tacet.
Sara Fraga, estudante do último período do curso de bacharelado em composição pela Universidade Federal de Juiz de Fora, Catherine Carignan, fagotista e chefe de naipe (por 12 anos) da Orquestra Filarmônica de Minas Gerais, e Catarina Domenici, pianista, compositora, pesquisadora e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, foram as personagens deste vídeo. A partir das experiências vividas por elas, nos aproximamos do mundo da música erudita no Brasil.

Tacet foi uma experiência transformadora para mim, mulher, musicista e pesquisadora sobre o tema. Fazer este documentário, ouvir tantas mulheres, suas histórias, dificuldades, superações, foi um momento ímpar na minha vida. Tacet foi um suspiro de esperança na minha concepção de igualdade de gênero.
— Sim, as mulheres estão aqui!
— Sim, eu estou aqui!
— Sim, existem muitas outras!
— Sim, nós podemos!
*O documentário Tacet recebeu o prêmio do “Janelas Abertas” da Universidade Federal de Juiz de Fora, Brasil.